10 de janeiro de 2008

Um prego

Ela corria de chinelos pela rua asfaltada. Sem pressa, distraída, corria para sentir a energia do seu corpo fluir pelas pernas magras e compridas. Era entardecer de quinta-feira e o céu colorira-se de vermelhos e amarelos que se misturavam e criavam uma bela e triste despedida para o sol quase ausente. Estava a quatro ou três metros do portão branco de casa quando pisou na calçada do vizinho gordo e solitário que reformava sua garagem e, imediatamente, sentiu uma dor terrível que enfiava, impiedosa, no seu pé esquerdo, um prego enorme que rasgou facilmente a maciez da borracha do chinelo e da carne branca do seu delicado pé.

Da dor seguiu-se um grito visceral, alto e agudo, que assustou e fez voar três pardais que se balançavam nos fios elétricos. O sangue derramava-se quente e ininterrupto pela calçada tomada de rachaduras e manchava, indolente, as plantinhas que brotaram dessas pequenas frestas. Ela, então, sentou no chão, pegou o pé ferido com as duas mãos e levou-o bem próximo aos seus assustados, mas curiosos, olhos castanhos. Segurou o prego torto e enferrujado, fechou os olhos franzindo todo o rosto, e, com um puxão, arrancou-o, fazendo jorrar ainda mais sangue pelo buraco no seu calcanhar. Assim que o prego saiu, jogou-o o mais longe que conseguiu (o que não é realmente longe) e xingou baixinho o vizinho gordo, bicha, retardado, filho-duma-puta.

O sangue a fascinava, mas, por não cessar, estava deixando-a preocupada. Pôs o indicador direito sobre o buraquinho e pressionou. Isso fez com que o sangramento estancasse, mas ela apertara mais do que deveria e o dedo entrou no buraco, alargando-o mais ainda. Assustada, destampou o furo e o sangue espirrou direto no seu rosto, entrou nos olhos e a cegou. Ela se desesperou e não conseguia se decidir se colocava de novo o dedo no buraco ou se limpava os olhos para voltar a ver. Percebendo que quanto mais demorasse a se resolver mais sangue perderia, tateando, enfiou com força o indicador no pé e depois esfregou o braço esquerdo no rosto, melecando-se mais ainda, porém tirando o excesso de sangue dos olhos e voltando a enxergar.

No entanto, por ter tapado o buraco com violência, o dedo inteiro entrara e o ferimento ainda vazava. O jeito seria colocar o dedo médio, e foi o que ela fez. Cuidando para não alargar demais o furo, foi enfiando devagar, até ele entrar todo. Achando tudo isso muito peculiar e ignorando a dor lacerante, quis juntar aos dois o anelar, mas esse não entrou facilmente e ela teve que forçar com a outra mão para introduzi-lo. Depois desse, o mindinho entrou escorregando. Sorriu.

Enquanto o céu escurecia, ela ia forçando e forçando até a mão inteira entrar no buraco do seu pé. Sentia seus dedos se mexendo dentro de si, tocando tendões e músculos e até conseguia vê-los na altura do tornozelo quando pressionava a pele com força. Então, deslocando a tíbia, empurrou todo o antebraço e parou no cotovelo. Já nem sangrava mais. Dobrou um pouco o braço e colocou a outra mão. Deitada na calçada do vizinho preparou-se para fazer um esforço descomunal e enfiar o braço esquerdo, mas ele entrou deslizando, como se estivesse ensaboado.

Para pôr a perna direita, ela afastou os braços e meteu-a bem no meio, abrindo caminho com o pé por músculos, ossos, tendões, veias e artérias, facilitando a entrada. Chegou à virilha exausta, toda suada, ofegante. Sentiu que seria a parte mais difícil de enfiar e que em seguida tudo entraria sem maiores dificuldades.

Arreganhou seu pé o máximo que pôde e foi entrando. Passou a bacia, a cintura, a barriga. Ao chegar ao peito, ouviu um estalo e viu que sua canela estava quebrada, partida ao meio, mas não se importou. Passou o tórax devagar, sentindo-se estranhamente nostálgica. Os seios se foram, os braços se foram, o pescoço se foi. Deu uma última olhada à sua volta, inspirou pela última vez o ar perfumado pelos jasmins do quintal da casa do vizinho e, de súbito, encaçapou-se no enorme buraco do seu pé esquerdo, já tão deformado, desaparecendo.

A noite tomara o céu, enegrecendo-o e o sangue no prego enferrujado brilhava frio sob a luz tremelicante de um poste ali por perto.

0 comentários: